Galina Popóvka e outras estórias

 

 

Rafael Sarto Muller

 

 

 

 

Copyright 2022, Rafael Sarto Muller

 

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

(Bibliotecária responsável: Bruna Heller – CRB 10/2348

M958g Muller, Rafael Sarto

Galina Popóvka : e outras estórias / Rafael

Sarto Muller.- Vitória, ES: Pedregulho, 2022.

64 p.; 13 x 19 cm.

 

ISBN 978-65-86932-64-5

 

1.      Contos brasileiros. 2. Literatura brasileira.

3. Escritores brasileiros. I. Título.

 

CDU 869.0(81)-34

 

Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura em português 869.0;

2. Brasil (81); 3. Gênero literário: contos -34

 

 

 

Sumário

 

1      Galina Popóvka. 2

2      A Caçada. 7

3      Zoológico. 13

4      Pataquistão. 19

5      Racionikov. 27

Sobre o Autor: 31

 


 

1                    Galina Popóvka

A naturalidade das coisas está nas atividades que, para além de um chamado animal, quase instintivo, existe uma retroalimentação positiva que nos faz querer e agir sempre mais. Esse instinto animal, tal qual nos humanos, não se furtava de atormentar também as galinhas.

Galina Popóvka era apenas mais uma delas. Poedeira, botar ovos lhe era tão natural que, por vezes, mesmo após as postas matinais, acabava por surpreender-se ao pôr do sol, em especial em dias frios, a olhar o astro-rei indo-se embora e o coração encher-se de calor. Nessas tardes, encolhia-se em sua palha em posição estratégica. De uma quina interna podia ver um vão de montanha por onde o sol baixava em tempos outonais e, assim, prolongava o prazer da contemplação.

Nessas coincidências, do sol metendo-se pela rachadura das montanhas, seu coração galináceo inflava-se e todo um calor percorria-lhe desde seus pezinhos pelados ao esterno proeminente, dissolvendo-se por entre as penas que quase eriçavam-se. Esforçava-se para manter-se discreta como se nada lhe ocorrera.

Mas era apenas o sol começar a pôr-se que seu coração parecia baixar por dentro de seu corpinho rechonchudo, baixando-se por suas vias digestivas. Quase sem perceber-se, sua cloaca inchava-se de sangue quente passando pelas veias periféricas e seu sexo se dilatava. Num parto orgásmico punha um ovo adicional ao final daquelas tardes solitárias e, coisa estranha, por vezes irrigadas de uma tristeza insofismável. Era de um certo tipo de tristeza que lhe servia a sensação de acalanto genuíno, natural. E assim dava-se sua atividade.

Em uma dessas manhãs, Popóvka, em uma profunda agitação, com o rosto quase em convulsão contida, após a postura matinal tradicional, aprochega-se de uma das comadres para partilhar-lhe seu segredo, o qual já não podia mais guardar.

– Popochénika! Preciso contar-lhe algo essencial.

– Oh! Algo essencial, é? Hihihi.

Popochénika, se fosse humana, seria uma ironista liberal moderna, que não pode se furtar a rir-se dos argumentos empíricos bem estruturados de galinhas como Popóvka. Mas esta não se incomodava pois até divertia-se com a leveza com que a comadre levava a vida, acreditando sem acreditar mas acreditando na beleza da naturalidade.

Popóvka continuou:

– Tive uma experiência.

– Oh! Uma experiência! Hihihi.

– Sim. Uma experiência natural, essencial. Estava mirando, como gosto de fazer, ao final das tardes, o sol se pôr por entre as rachaduras da montanha. Dali do popozário (era como chamavam o galinheiro) de onde é possível vê-lo. De uma esquina interna. Num dado momento, quando tudo é penumbra, minhas vistas se turvavam e não sei que qualquer coisa que possa ter visto para lá da curva da montanha. Coisa estranha, meu corpo se estremeceu e botei-me mais um ovo! Veja só: mais um!

– Oh! Você é uma louca! Hihihi. Deve de estar danada! Hihihi. Uma louca! Hihihi. Pó! Hihihi!

Popochénika não compreendia nada. Para referenciais humanos, seria uma porta. Ainda assim, e talvez por isso, era-lhe tão confortável a Popóvka confessar-se-lhe seus segredos, criando entre as duas uma intimidade até mesmo estranha. Popóvka compadecia-lhe do sofrimento de Popochénika mesmo quando esta mesmo não se dava conta dele. Mas essa relação, aparentemente unilateral, servia-se a ambas, posto que do contrário ninguém lhe daria ouvidos a Popochénika.

Não tardou, como era de se esperar, que aquela história se espalhasse no galinheiro das maneiras mais deturpadas o possível. Algumas aumentaram o número de ovos colocados. Outras diziam que Popóvka haveria seduzido o galo e seus ovos estariam galados. Outra parte especulava que Popóvka mesmo era uma capitalista, que botava mais ovos visando maior lucro perante os humanos coletores, ainda que mal soubessem o que era lucro e sequer o tivessem. Coisa estranha, a história que mais ganhou visibilidade, talvez pelos traços explicitamente fantásticos (porque a história do lucro era certamente mais fantástica, só que as galinhas não o podiam compreender), fora a dos devaneios crepusculares de Popóvka. Teria a comadre tido uma visão, enxergado para além da curva, como se os raios luminosos assim pudessem fazê-la (a curva), e teria tido a revelação de um lobo! Oh! Sim! Um lobo! Ou uma raposa. Ou outra fera similar. Também não concordavam nisso. Mas teria caninos e seria uma ameaça derradeira.

Em menos de dois dias as galinhas estavam organizadas. É-lhes natural organizarem-se facilmente em torno de ilusões, mas com muita dificuldade em torno de argumentos mais fidedignos. Até Galina Popóvka ajuntou-se, pois já ouvia tantas histórias a respeito de uma Popóvka, que imaginava tratar-se de uma homônima. E, tendo havido uma revelação, era-lhe ideal conhecer também as revelações, tal qual era o seu pensamento.

Fora decidido em reunião. Não havia dúvidas que a turbidez de visão da comadre-reveladora (que a essa altura já estrategicamente perdera o nome) era o sinal ele-mesmo da sua clarividência. Só alguém com tamanha clarividência poderia ver tão bem por vistas turvas. A ameaça era real e havia sido confirmada, portanto. Como as galinhas são muitas e gritam bem alto, fora preciso incorporar também as histórias particulares que cada uma criou para que todas estivessem satisfeitas e a transição da escuridão para a clarividência estivesse bem negociada. Por isso mesmo, havia indícios (fortes, por sinal), de um papiro que a comadre-reveladora teria deixado informando que botar mais ovos seria a salvação. Evitaria a tentação de serem presas da ameaça (que supostamente gostaria mais de ovos crus do que de suculentas galinhas ao molho pardo) e, caso não se confirmasse a preferência da ameaça, os humanos estariam ali para protegê-las de ameaça nenhuma, devendo ser recompensados, legitimamente, por isso.

Naturalmente, as galinhas dividir-se-iam entre essas explicações e talvez surgissem com várias outras. Relevante é que, fosse o que fosse, não restava dúvidas que a salvação estava em botar mais ovos.

Algo inesperado, então, ocorria a Galina Popóvka. Assuntou-lhe fortemente uma tristeza mais profunda e incerta sobre o que seria dela naquele popospício (o nome fora alterado para incorporar um significado mais auspicioso, conforme relatos da época e fontes documentais). Não podia senão ver outra coisa que a ameaça. Buscava, aos finais de tarde, o sol na rachadura da montanha e não podia ver outra coisa senão vultos movendo-se agilmente. Comentava frequentemente com Popochénika e outras comadres (agora a recomendação é que estivessem sempre juntas, para que as decisões tomadas fossem sempre majoritárias nos grupos) sobre essas visões.

– Nós também temos, comadre. Respondia uma.

– São ágeis, não? Hihihi.

– Até me excita pensar nos caninos molhados na minha rachadura da montanha! Hihihi. Hihihi.

E botavam ovos. Loucamente. Todas excitadas pela ameaça de morte e pela segurança dos tais Lucros (cuja grafia, apesar de galinhas não escreverem, tinha sido referendada que se desse em inicial maiúscula). Apenas Popóvka não se excitava mais com o pôr do sol.

Em seu aniversário, as amigas tiveram uma ideia que lhes pareceu fantástica, mas viriam logo a perceber que não fora tão boa assim. Arrumaram um gogo-galo para seduzir-lhe a Popóvka de modo que ela pudesse estimular-se a botar alguns ovos a mais. Fizeram-lhe várias recomendações de segurança para que o ovo não lhe saísse galado, posto que os humanos a poderiam punir por isso, mas Popóvka sequer podia concentrar-se. Era-lhe tão natural a postura, mais natural que a todas. E, de repente, todas botavam a frequências cada vez mais absurdas; e, tão somente isso ocorria, perdia-se a naturalidade.

A naturalidade, dizia para si mesma, é querer e agir cada vez mais. Eu quero viver. É preciso botar ovos para viver. Logo, eu quero botar ovos. Organizava perfeitamente os silogismos, como lhe era verdadeiramente natural. Mas pouco interessavam os silogismos à comunidade. Não eram brancos e redondos. Era preciso que fossem brancos e redondos para ter alguma credibilidade.

Todo esse raciocínio lhe passou pela mente durante o breve decurso de um minuto e meio, durante o qual o galo contratado sensualizava dançando para ela e gritando esganiçado algo que muito de longe poderia se apreciar como música, porém sem letra. Assim fazia para sobreviver, já que não punha ovos.

Chegou então à derradeira conclusão: só podia haver uma falácia em toda aquela estrutura retórica: as amigas. Brigou com todas. De voo batido, batia as asas, batiam-lhe nela, ela batia nas outras. Penas voaram. Apenas as galinhas que não. Naquela noite Popóvka preferiu dormir em cima de uma árvore cuja copa invadia o galinheiro, antes que com as amigas ironistas no aconchego da palha.

Fora uma noite agitada. Mal pretendia cair no sono, ouvia uivos. Poderia aquilo ser apenas uma alucinação pré-sono ou pós-cochilo, mas ao mesmo tempo pareciam-lhe tão reais. Não havia temor maior que a morte, em especial em noite fria de desalento perante todos. Esforçava-se para fechar os olhos ao mesmo tempo que não podia deixar de querer saber o que se passava lá fora. De quando em quando levantava-se, sacudia um pouco as penas do sereno do frio da noite, e caminhava pelos galhos para tentar melhorar sua visão por entre as folhas da copa, mas era em vão. Voltava a tentar um aconchego desajeitado em algum outro ponto da copa da árvore de alguma outra forma.

Amanhecia e Galina Popóvka não dormira nada. O gogo-galo, que em seu duplo turno também era segurança de guarda da ameaça, marchou conservador para o centro do galinheiro. Não aparentava mais nada do molejo seduzente da noite anterior. Inflou o peito e parou. Deu uma sacudidela nas asas e nas penas. Percebeu que poderia tomar mais fôlego e relaxou. Respirou umas duas vezes. Balançou-se com virilidade mais um pouco. Inflou novamente o peito, agora aquecido para um pouco mais além do que antes, e berrou.

Eram quatro da madrugada quando Galina Popóvka assustou-se e caiu de súbito no meio do galinheiro. No meio da manhã ainda escura, as outras galinhas colocaram-se todas para fora, movendo-se rapidamente, em torno da desfalecida assustada. Eram vultos.

***

P.S.: Algumas horas adiante, conforme contam os relatos documentais policiais, Galina Popóvka, ao clarear o dia, fora encontrada solitariamente morta e dilacerada no meio do galinheiro. A perícia identificou, de modo inconclusivo, uma série de bicadas em seu corpo. Admitiram em juízo, entretanto, que poderiam ter sido feitas por caninos da ameaça em movimentos de chicote do pescoço. O mais provável, portanto, é que a ameaça preferisse atacar assim do que com uma sustentável e respeitável mordedura.

Por via das dúvidas, a árvore foi derrubada.

 

 

 


 

2                    A Caçada

Eu trabalhava numa mecânica lá no centro da cidade muito antes de por lá na praça da rodoviária se meter a tal da Delegacia da Mulher. Nunca olhei por coisa boa aquele tipo de lugar. Acabou que pros negócios da firma até que foi bom, então depois de um tempo eu fiquei na minha. Aquele trem parecia uma afronta. Mecânico não mexe com mulher. As dona que iam lá eu até olhava, tinha umas rabas que não tinha jeito de não olhar, mas eu ficava de boa mascando língua. Lá na mecânica tinha um sujeito Gilberto que logo arregalava os olhos e ia incomodar as moças. Era do financeiro.

─ Doido, ─ ele falava ─ com o tanto de dona que tá vindo aqui agora, vai rolar de desenrolar uma grana boa. Se liga!

Era um tipo meio abismado. Eu falava “não mexe! que agora tem essa bronca aí [a Delegacia]”. Eu preferia tirar dos figurão que aparecia. Bobo não tem bago ou grelo. Até carburador de carro novo já troquei. Pra eles era bagatela. E eu ouvia eles ainda com as esposas no telefone ─ “já resolvi, amor” ─ pagando de macho eficiente para poder comer a boceta delas mais tarde.

Eu gostava do seu Costa. Ele devia ter por volta de uns 50 anos e era já um grisalho boa pinta. Pintoso, um pouco afetado, verdade. Mas era só carrão que ele levava e parecia que não trabalhava. Ficava na mecânica pajeando o carro. Eu pegava ele me olhando às vezes. No começo quase voei nele, mas eu lembrava da grana, lembrava do Gilberto: “pagando bem…”. E pelo menos nunca veio pro meu lado. Esse tipo aí eu respeito. Depois daquele silêncio esquisito ele me olhando eu soltava um “é… esse garotão vai dar trabalho”. Era mágico. O viado já se ouriçava e tirava o cartão. Eu podia botar o que eu quisesse no orçamento que ele arrematava. Enfiava o cartão na máquina e recomendava o serviço.

Vez ou outra ele mandava uma secretária. Não sei de onde esses afetados tiram tanta mulher. Uma mais gostosa que a outra, mas tudo dona fresca. Mecânico já foi fetiche, mas essas mulher começaram tudo a ficar fresca com medo de doença que antes nem existia e eu nem acho que exista. Não dão importância e ainda reclamam do serviço sem nem saber o que estão falando. Só quando eram as peruas do seu Costa que ele já pedia para falar comigo e autorizava tudo. Eu já sabia: aquela ladainha, telefonema, seu Costa, aprovado. Com a Delegacia aumentou o número de mulher, principalmente do seu Costa. Ali quase do lado da Delegacia parecia até que elas já chegavam ameaçando.

Até que um dia, eu bem debaixo de um Audi Q3 do seu Costa ─ ele devia trabalhar com revenda, não tinha lógica tanto dinheiro, não existe quem tenha tanto assim ─,

─ Ô, Freitas! ─ Dá um berro o Gilberto ─ Quem é essa aí, doido?

─ Quem, doido?

A dona tinha um rabão. Eu gostava. Ainda gosto. Mas era daquelas gordas metidas a magra. Disso eu não gostava, não. Entubada num vestidinho de uniforme de firma preto, os peitão quicando. Até engoli a língua e mudei o tom:

─ Pois não, dona?

Eu nem precisei esperar ela responder para saber que era das do seu Costa mesmo. Deu aquela parada, os peitão pararam também, quase mordeu a língua também.

─ É esse garotão ─ eu lembro bem que ela fez outra pausa nessa hora ─ que eu vim buscar.

Aquele “garotão”, aqueles trem de por-entender. Será que o seu Costa não era viado nada e fodia essa dona também? Será que ele fodia as dona tudo? Aquilo me deu o maior tesão. Arrumei o pau na calça e fui ter com ela.

─ Final da tarde, dona. Tô terminando o câmbio e ainda tenho que testar o engate pra ver se dei jeito nos tranco.

─ Tudo bem.

E ficou quieta, a puta. O mesmo silêncio.

─ Tudo bem… tudo bem… ─ Resmunguei meio que saindo. Ela não mexeu um dedo, mas eu não parava de ver o vulto dos peitão quicando na minha frente. Jesus!

Desde essa época eu vejo esses peitão quicando. Passou meses, ela deu papo, a gente juntou e tá juntado há uns dois anos, quando ela começou a pagar de louca. Eu já nem ligava mais para a Delegacia e, pra falar bem da verdade, nem me lembrava muito que ela existia. Até porque, um monte de mulher junta num mesmo espaço, deviam ficar fazendo é fofoca em vez de trabalhar. E eu não estou nem ligando para fofoca, porque meu negócio é trabalhar. Então eu não queria nem saber. O serviço só aumentava e meu chefe tinha acabado de me fazer sócio da mecânica. Uma porcentagem bem pequena, mas eu pelo menos já não era mais empregado. Não precisava mesmo de ninguém me dando benefício de FGTS, INSS. Melhor trabalhar de igual para igual em vez de ficar devendo favor. O Gilberto nessa época foi demitido. Disse que não aceitava, bateu de frente, tomou ferro. Eu gostava dele, mas ele era doido e não era muito inteligente mesmo. Se o patrão disse que estava ruim de fechar as contas, de conseguir pagar funcionário, e que ia precisar cortar os penduricalhos e simplificar os pagamentos, é porque estava ruim mesmo. Não importa se ele continuava andando de carrão igual o seu Costa. Patrão pode. O Gilberto foi questionar que dificuldade era aquela e ficou parecendo que estava chamando o chefe de hipócrita. Eu fiquei do lado do chefe e foi melhor para mim que consegui trabalhar até mais, e meio que mantendo ainda o faz-me rir.

Eu sei que minha mulher (a gente não separou ainda) tá com a lataria nova, mas o seu Costa não parava de aliciar mulher para lá. A Fabiana já não trabalhava mais pra ele. Eu fiz ela largar porque eu não ia correr o risco de ser chifrado com viado. A Fabiana nessa época começou com uma tara de arrumação e limpeza que você não imagina. Ela falava que estava cuidando bem de mim, que era dedicada, a casa sempre limpa. Eu concordo. Não vou discordar, não. A casa realmente estava sempre limpa. Mas era muito. Mais dia menos dia eu não ia poder nem entrar em casa porque ela ia dizer que sujo do que jeito que eu chegava simplesmente não podia e ponto. Mas ela casou com o mecânico por opção dela. Se ela gostasse de homem limpinho, arrumado, afetado, ela que voltasse com o seu Costa que era todo bem cuidado.

Ela começou com uma mania esquisita de se espremer pelos cantos da casa toda para limpar as quinas. Um dia eu chegava, ela estava com uma escova de dentes atrás da geladeira. Os peitos saíam até xadrez da grade do motor da geladeira. Outro dia era atrás da TV, que eu não sei como ela não derrubava. Todo dia era um canto diferente com aquela escova velha. Gorda metida a magra, achava que cabia em qualquer buraco. Até que um dia eu cheguei ela estava metida com metade do corpo debaixo do móvel da cozinha. A bunda arrebitada para fora, de quatro. Era uma sexta, eu já tinha tomado umas duas latinhas lá na mecânica mesmo para relaxar, cheguei em casa no maior tesão. Aí essa mulher desse jeito, com a bunda para cima, gritando “amor, me ajuda”. Ela já se metia em tudo quanto é canto para limpeza e nunca tinha ficado entalada. Eu não tinha como saber que ela estava entalada. Eu achei que era uma brincadeira diferente que, por sinal, ela sempre gostou de fazer. Rasguei aquela saia-tubo que ela não tirava para nada e meti nela. A saia saiu até voando de tão apertada que estava naquela bunda. Depois eu comprei outra igualzinha para ela no sábado.

Foi quando ela parou com aquela limpeza toda. Só que aí ficou até porca também. Foi uma semana sem olhar na minha cara, sem lavar uma vasilha, e eu já tinha pedido desculpas por eu ter entendido errado, que não era bem uma safadezazinha que ela queria. Até que no outro sábado eu dei um ultimato: a gente precisava conversar sério e resolver, porque não podia ser só do jeito que ela queria. Ela precisava ceder em alguma coisa pelo menos. Ela gritava, andava em círculo, até que deu um pulo de cabrito doido por cima de mesa de centro da sala e veio ter com as mãos no meu pescoço. Ela bufava com um olho arregalado e outro nem tanto. Uma banda do nariz até escorria água a cada expirada. O gatuno da vizinha que se espreitava por lá igual assombração miou sei lá de onde e eu soube que era ele só pela voz. A gorda quase me jogava para trás na hora que eu me escorei no móvel da TV e consegui tirar ela de cima de mim. Ela tropeçou na mesa de centro e foi com a cabeça na porta do armário-estante do outro lado. A cabeça vazou para dentro do móvel e não saía mais. Entalou.

─ Féladaputa! Corno!

A voz dela saiu meio abafada, meio embargada e meio esquisita igual pirralho gritando na frente de ventilador. Aqueles gritos me deram uma baita irritação. Então se perguntarem se eu estava irado, ali eu estava. Eu comecei a rir. Não por mal. Ela devia pensar “desgraçado!”. Eu só conseguia pensar ─ até que deixei escapar ─ que ela devia estar bem confortável ali espremida dentro do móvel com o bundão empinado. Só lhe faltava a escova descabelada. Aí ela gemeu: ─ Desgraçado!

Eu pensei “acertei”. Eu quase pude ouvir o gato: “não é que acertou?”. Nisso eu já dava gargalhada. Peguei ela pela cintura e puxei para ver se tirava ela de lá. Mas não sei se eu que estava sem força ou ela que estava entalada mesmo. Ela esperneava e eu ria e o gato desistia e se virava desinteressado procurando o rumo de casa. Ela me acertou um chute no joelho.

─ Se vira aí, então, ─ esbravejei ─ puta arregaçada! ─ Virei as costas e saí de casa. No mesmo dia, horas depois, estava a delegada da tal da Delegacia da Mulher me dando voz de prisão sem nem parar para me ouvir.

Depois disso que eu vim a descobrir que era corno mesmo. E ela mesmo tinha me falado naquele dia que ela se enfiou no armário a gritar, mas eu achei que era só xingamento. Mas hoje eu entendo que as palavras têm apenas o significado que elas têm e ponto. Junto com o processo criminal veio o pedido de divórcio ─ ela alegou união estável, seguindo sugestão do advogado do seu Costa, lógico, mas a gente nem tinha casado no papel, então o absurdo já começou por aí. Além disso, com a louca do jeito que estava, “estável” era a última coisa que poderia ser aquele relacionamento. Como nem ela nem eu tínhamos bens ─ explicou o juiz ─ foi fácil.

A audiência criminal é que foi um saco.

─ Freitas, ─ começou o defensor público ─ violência doméstica é acusação séria. Pelo menos durante o processo é bom você ficar longe de ser visto em boteco, em bebedeira. ─ Outro viado, ─ pensei ─ só pode…

─ Aqui em Lafaiete até Jesus tá montado no saca-rolha! ─ Retruquei ─ Eu bebo o que eu quiser.

A acusação de alcoolismo veio também, como se fosse crime. Era óbvio que ela ia apelar para sentimentalismo e tentar atacar minha reputação pessoal, que não tem nada a ver com aquela porra daquele processo. Nego só olha as pinga que eu tomo, mas não vê os tombo que eu levo. Nesse tombo que eu entendi o que estava se passando. E aí minha sorte foi que o defensor era mesmo um viadinho bosta e eu pude falar por mim mesmo sem precisar ficar ouvindo o que ele tinha para falar.

─ Olha, ─ disse eu para o juiz que era recém-chegado na cidade e não conhecia da história do lugar ─ você não sabe como eram as coisas por aqui antes de essa Delegacia da Mulher chegar, então eu vou contar para você. Antes não se ouvia falar em nada de violência, mulher nem saía de casa, então não tinha motivo. Depois, começou uma real caça aos homens de verdade dessa cidade. Uns presos, outros não podiam ficar a sei lá quantos metros das mulheres. Como a cidade é pequena e as mulheres ficam batendo perna o dia todo, esses aí tiveram que sair da cidade. E sem homem para trabalhar, é lógico que a cidade virou o que virou. Mulher compra é com dinheiro de marido, então essa mulherada gastando foi um processo artificial e, mesmo com os maridos pagando as faturas em dia, a conta veio. E se a gente tenta impedir os gastos, é violência. Pode olhar: depois da Delegacia da Mulher, aumentaram os números de condenações de homens. Só de homens. Eu não tenho nada contra mulher nem contra viado, mas que eles não entendem nada de contas isso é um fato. Eu não estou defendendo homem que bate em mulher, não, mas é uma questão de responsabilidade com o município e com as contas: se continuar essa perseguição a homens, não vai ter como pagar as dívidas que as mulheres fizeram no mercado, por mais que já estivessem pagas. E a principal prova de que é uma perseguição deslavada é exatamente porque essas mulheres todas sabem que homem de verdade está acabando, mas mesmo assim elas continuam nessa perseguição. Elas estão todas iludidas com os viados igual o seu Costa, limpinho, bonito, cheio da grana, com discurso bonito, mas que a gente sabe que não trabalha. E não sabe de onde vem o dinheiro dos carrões. Que aí, eu não posso provar, mas a gente ouve muito já há um bom tempo… que é para financiar exatamente o nosso extermínio. Então tem que dar um jeito de parar com isso. Seja como for.

O juiz ficou preocupado. Por um momento eu achei que era porque ele percebeu que ele também estava ameaçado naquela cidade e ouvir a verdade às vezes incomoda. Aí ele deu uma batidinha frouxa na mesa com aquele martelinho ─ quem nem devia chamar martelo, porque não é martelo de verdade ─ e suspendeu a audiência. Com aquela afetação na hora de pegar no cabo do martelo, eu percebi que eu falei bem e que ele ficou preocupado, na verdade, porque o esquema da corja dele já era público e notório. Ele pediu um perito em economia para fazer avaliação da cidade antes de decidir definitivamente sobre a minha situação, mas ainda com restrição de ir em casa.

Saí de lá corrido para a mecânica. Já tinha um outro no meu lugar. Meu chefe me gritou para falar comigo, mas eu nem fui porque já tinha entendido. O seu Costa estava lá, olhando para o novato arrumando o carro dele, do mesmo jeito que ficava para mim. Ele me viu e continuou lá, calado, me encarando.

─ Viado. ─ Resmunguei. Busquei uma muda de roupa amarrotada e suja no armário e saí a passos rápidos sem nem olhar para trás, arrumando a calça. Não pisei mais em Lafaiete, atendendo à liminar. Eu sabia que ele estava me olhando satisfeito.

 

 


 

3                    Zoológico

A branquitude corria solta na escola. Na verdade, apenas andava a passos largos pela agitação estudantil natural, presa dentro dos muros e grades da Fortaleza que se erguia em bairro nobre da cidade homônima. Eram brancos, mas assimilados pela doutrinação da concorrência de todos contra todos, da sobrevivência do mais forte militar ou mais gabaritado economista, o que, no fundo, não fazia diferença, pois as grandes corporações dominam a terra, as armas e as finanças, a um só tempo. A expectativa nos inconscientes adestrados dali era só essa: tornar-se o próximo dominador. A realidade prática, entretanto, os colocava enquanto alunos de um sistema escolar tradicional, castrador da inventividade, sem partido e sem política, preparador para um próximo holocausto. Tudo era inverso: na sociedade, mestres. Na escola, enquanto alunos, súditos. Na sociedade, manter a ordem das coisas. Na escola, subvertê-las enquanto era tempo. Quanto mais joviais, mais enérgicos e menos controláveis. Progressiva, a Disciplina, que toma tempo, ia inculcando-lhes os cérebros e tornando-os mais lentos e letárgicos.

Os armários tinham chaves e cadeados: mais para ensinar-lhes a mítica da segurança, do crime, do risco e da ameaça do que para proteger-lhes os pertences. A biblioteca, um sistema informatizado de controle dos livros selecionados disponíveis e emprestados, com empréstimos em tempo proporcional às estimativas de tempo de leitura dos alunos, mais para ensinar-lhes o tempo ótimo de processamento mental e digestão superficial do texto do que para manter os pertences da biblioteca. Debruçar-se sobre um texto estava fora de questão: era necessário postura ereta e firme, elegante. Mesma coisa a correria: mais para ensinar-lhes a viver sem tempo para engajar-se com a mudança do que para dar-lhes oportunidades de usar a rapidez para mudar as coisas velozmente, o que poderia degringolar na palavra diabólica proibida: desordem.

Os professores dominavam bem seus alunos. Já não usavam de palmatórias, mas de um sistema rígido de recompensa positiva para os melhores classificados, associado, naturalmente, a um sistema rígido de punição caso esses melhores classificados optassem por partilhar seus ganhos com os outros: ora, tal partilha tornaria os outros letárgicos, sem o desejo efetivo de obter os mesmos ganhos e lucros. E, com os outros letárgicos, a vitória dos enérgicos estaria garantida. E os enérgicos tornar-se-iam letárgicos pela falta de esforço despendida para ganhar. E toda a energia e velocidade que propicia a manutenção da postura ereta, firme e elegante seria sepultada. Compartilhamento e lentidão eram duas faces de uma mesma moeda. Os alunos não eram mulas – que podem realizar grandes trabalhos em grandes cargas, ainda que lentamente -, mas cavalos alazões: rápidos, que sozinhos eram mais velozes, ainda que não fizessem obra nenhuma (o Sistema já estava construído pelos seus pais). E sempre elegantes. A vergonha inestética, o linchamento social por serem “cultuadores da letargia”, todas punições nefastas, eram difusas e abstratas, não partindo de um professor diretamente, mas da própria cultura. Eram as Mulas. Pouco duravam na escola: convertiam-se aos primeiros alazões com trabalho duro (afinal, todos ali tinham condições basais mais ou menos igualitárias para tornarem-se alazões) e usavam de sua experiência de superação para manter o mito; ou abandonavam a escola e nunca mais se ouvia falar deles – fracassados; ou suicidavam-se, e não se falava nisso também porque não se sabia bem ainda como era a morte. O risco de a morte ser boa ou um mundo letárgico juntava uma série de valores os quais deveriam ser evitados: risco, bondade, letargia.

Com efeito, havia um professor que adotava uma pedagogia toda inversa: estimulava o compartilhamento; não temia arrombamentos em seu armário – que vivia vazio, salvo quando algum aluno lhe deixava, furtivamente, uma maçã de presente; e nem tinha trancas; carregava tudo o que tinha na cabeça e por isso mesmo era meio corcunda e escoliótico. Tremia da mão direita, que não tinha muita força. Destro por imposição e trêmulo, sua letra era um garrancho. Daí que nas aulas só falava, contava histórias, sem fazer – vejam que absurdo! – um sequer esquema, infográfico ou fluxograma para alinhar o raciocínio às mentes das quintas séries. Seu nome? Prof. Abrakadov.

Não se sabia como uma Mula tornara-se e mantivera-se professor ali. Tampouco, coisa estranha, como era logo o cultuador da letargia e da palavra maldita o que mais exercia uma influência controladora sobre seus alunos. Todos idolatravam-lhe a ele: não a seu corpo torto; nem a suas opções pedagógicas e comportamentos; mas a Ele. Não se sabia também bem o que haveria além de corpo e comportamento nas gentes, para se dizer o que exatamente era cultuado no prof. Abrakadov. Fato é que – e fato é fato – era hipnotizadamente valorizado.

Tal era hipnose coletiva e a influência que Abrakadov exercia sobre seus alunos que mal preparava as aulas. Segundo nossa pesquisa documental, consta, inclusive dos registros, que Abrakadov fora várias vezes denunciado por não dar aulas, sob argumento dos alunos que afirmavam recorrentemente de que a aula dele sequer parecia-se com aula, de tão boa que era. Naturalmente, os alunos mais jovens e menos controlados que falavam essas tonterías. Mas a palavra daqueles pequenos mentirosos era suficiente nesse caso para servir-lhe de registro contra o professor, tão odiado e temido dos pais alazões.

***

Certo dia, durante o horário do intervalo, impressionou-se Abrakadov ao abrir o armário que a ele lhe designaram – ele nunca usava o termo “seu armário”; e, certamente, em respeito à sua memória, acredito melhor não o fazer igualmente ou, caso o faça durante esses registros rápidos, que eu deixe registrado também explicitamente que não se trata de um ato consciente, mas inconsciente de um ex-alazão escritor-repórter. Não estava lá uma maçã, mas uma goiaba! E nem eram tempos de goiaba. Os registros, muito exatos, afirmam que dia 19 de novembro de 2019, uma terça-feira, Abrakadov fora novamente registrado como infrequente em sua atividade docente, um dia antes daquele fatídico dia de abrupto encerramento das atividades letivas da escola. Dia esse que, acreditamos, tenha sido o dia da notável goiaba. Poderia ter sido também segunda-feira, 18 de novembro, quando também há registro de infrequência, mas não teríamos informações para preencher a rotina do dia 19 de Abrakadov. Na verdade, as infrequências são tantas que cremos que pouco importa o dia da goiaba, goiaba suculenta, goiaba vermelho de um sangue anêmico, sangue de mula, vermelho-mula.

A goiaba tinha bicho. Estava bichada. Abrakadov pegou-a primeiro com a mão direita, trêmula. Ainda não o sabia. Mordeu-a lento, tentando acertar a boca, meio de lado, torto que era. Um suplício! Nos dentes, sentiu um tremor diferente. Um fisiologista, médico ou odontólogo poderia atestar firmemente tratar-se de uma piora de seu quadro clínico de tortidão. Abrakadov era cético, entretanto. Sabia por experiência própria, por empiria: havia algo ali se mexendo e era mais que a própria mandíbula e os músculos faciais e labiais e as mãos. Parou um momento – na sua forma de parar não parada, porque a tremulação, enquanto ação, não pára.

O sinal soou. Abrakadov colocou a goiaba na mão esquerda, ainda inteira, sentindo-a mexer-se por dentro, e pôs-se em direção à sala. Ia arrastando a perna direita, trêmula também, todo torto. Chegava atrasado. Os alunos o sabiam. Não era problema. Já estavam no quinto debate. Uma coisa que faziam às escondidas, coisa que só Abrakadov aprovava. Não achava ruim. Dizia: o direito à privacidade tem que ser conquistado pela luta! Um louco! Quem ousaria falar de um direito político ali. Ele dizia até de outros.

– Vejam essa goiaba! Deixaram-na, creio eu, que para mim!

E levantava a goiaba aos céus. Os alunos se espantaram. Alguns riram. Algo havia ali. Abrakadov tomou a goiaba com ambas as mãos, uma mais forte dando o suporte. A mais fraca, tremendo, ia fazendo movimentos rápidos tentando serrá-la. A goiaba pocou na sua mão, manchou a saia da camisa. Estava todo borrado.

– Ela tem bicho!

“Óh! Que nojo!”, pensou um aluno. Outro riu por dentro.

– Quem faria isso? Deixar-me uma goiaba com… com…

Fez-se silêncio.

Alguns alunos mal se aguentavam. Estaria Abrakadov emputecido? Tiraram-no do sério?

– …com Vida!

“Óh! Não!”, exclamaram!

– Vejam bem que saliências!

Começou Abrakadov. O bichinho branco se remexia de um lado para outro, umedecido, tentava-se se jogar para dentro e para fora da metade da goiaba. O professor em nada se incomodara com o presente de grego. Pelo contrário, divertia-se. Andava de um lado para o outro com a goiaba embicheirada por entre os alunos. Uns gritavam. Outros olhavam curiosos. Ele perguntava: “alguém se habilita a comê-lo?”. E logo mais: “alguém se habilita a comê-la?”. Os mais frescos faziam vômito. Aquilo estava para o horror. A qualquer momento as coisas poderiam perder o controle. Parecia ser o que esperava Abrakadov.

No frenesi, o professor levantou novamente aos céus a goiaba na frente da turma, em silêncio. Todos esperavam apreendidos. Ele passou a goiaba embicheirada da mão direita trêmula para a mão esquerda firme.

Silêncio.

Os alunos prenderam a respiração.

Conheciam o professor.

Não tardou muito tempo para um observador externo, ele levou a goiaba à boca e mordeu o bicho.

Um aluno gorfou ao fundo da sala.

Abrakadov mastigou quatro vezes. Ninguém ouviu, mas todos puderam ouvir o corpinho mole do bichinho branco sendo esmagado – ploft! – por seus dentes trêmulos. Depois, sem voltar-se para o aluno que limpava a boca do vômito ao fundo da sala, continuou:

– A água da goiaba é vida. O bicho era vida. A sua goiaba, seu alimento, sua vida, estava preservada por sua luta, por sua presença. A água e todo bem só pode ser protegido pela luta e pela presença. Ninguém se habilitava a comê-la, a explorá-la, enquanto o bicho estava lá. Ao contrário, a existência do bicho retirou-lhes inclusive o ar, causou-lhes náuseas. É forte sendo fraco, porque está presente. E a única morte que lhe foi possível tornou-o memorável. Ele estava condenado a viver sua vida no lixo, uma vida de fartura para o bicho que era, ou morrer lutando pela goiaba. E quem fora capaz de arrancar-lhe a vida? Alguém que não está submetido às ordens, à estética do belo, à estética do saboroso. Há o ser vivo. Há o ser memorável. E no meio dos dois não há nada mais. Há o estar presente. Há o não seguir regras. No meio dos dois, só ausência.

Os alunos não se contentaram. Levantaram-se e puseram-se para fora da sala. Apenas alguns ficaram para acudir o de estômago fraco.

***

Dia seguinte, Abrakadov ainda virava a esquina rumo à escola quando já ouvia os brados incessantes vindos de dentro dos muros da fortaleza. Não tinha certeza do que ouvia no conteúdo: “Bicho mole em dente duro tanto morde até que… murcha?” Não era plausível que os alunos tivessem se dado ao trabalho de um trabalho tão porco!

Entrando pelas grades da porta da frente, via o conjunto pululento de alunos enraivecidos sentindo-se ferozes. No mesmo instante, os alunos o viram naquele fatídico dia 20 de novembro. A perna torta à direita já o facilitou virar de lado e tomar outro rumo. Mas impediu de correr muito rápido. Os alunos tomaram-no pela traseira. Elevaram-no ao alto nos braços em meios aos brados na frente da escola. Estava feito! Os alunos entenderam tudo o que a escola os dissera: eram os trucidadores de bichinhos brancos, moles. Tinham que ser como o professor Abrakadov. Naturalizar a estética da brutalidade, morder para matar o que quer que seja. Abrakadov estava desolado nessa hora!

Estavam presentes, eram lutadores. Pelo quê? Pela trucidação dos bichinhos brancos moles. Pela trucidação dos outros presentes, lutadores. Entenderam ou não entenderam? Virou na esquina um ônibus branco. Levava faixas pelo dia da consciência. Os alunos se exaltaram mais! Era a hora.

Todos se envolveram na contenda. Os profissionais registradores que trabalhavam robóticos pregaram as bochechas gordas nos vidros dos escritórios dentro da coordenação pedagógica para olhar o que se passaria. Há apenas relatos, mais ou menos fidedignos, apesar de ser impossível julgar a fidedignidade de qualquer relato meramente pelo coerentismo dele em relação a outros relatos, o que validaria uma teoria da conspiração, mas parece coincidente que os alunos foram em peso com pedras e paralelepípedos na mão contra o ônibus. Em outras mãos de outros alunos ia Abrakadov, torto, tentando desvencilhar-se. Entraram em confronto. O ônibus estava lotado de manifestantes. Os alunos pararam antes de lançar a primeira pedra: eram negros.

Abrakadov foi posto no chão. Os alunos olharam para ele, esperando um momento de filosofia. Em vão. Abrakadov abaixou a cabeça como uma Mula que era e ficou parado. Os alunos-alazões não eram nada em grupo. O ônibus desviou um pouco à direita (os alunos ocupavam uma parte da rua, mas não toda) e seguiu seu rumo à manifestação da consciência sem maiores problemas. Os alunos retiraram-se para dentro, sem se bradar e sem se dar o menor pio. Eram, enfim, frangos: silenciosos, assustados. Não corriam, nem eram os primeiros. Eram uns todos.

Abrakadov estava do lado de fora e acompanhou toda a cena. Nunca mais entrou para dentro das grades da escola. Seus registros continuaram infrequentes, agora com razão.

 


 

4                    Pataquistão

Miaukovski Behemotakovitch Wola era um gato de traços finos, em todos os sentidos que lhe pudessem prover. Era fino nas feições: o pelo curto, aparentemente aparado à risca do detalhe, com muito esmero, mas natural e de coloração malhada. Era fino nas ações: o passo firme, mas muito jeitoso, sempre com ares de sobriedade e sensatez. Os olhos, um ligeiramente esverdeado, outro ligeiramente amarelado, o auxiliavam na fineza. Era fino, ademais, no trato com seus semelhantes. Muito querido em Pataquistão, causava sempre uma grande impressão naqueles com quem tinha contato, fosse direta ou indiretamente através de seus pratos requintados. Era chef, especializado em cozinha francesa, o que também lhe fazia, enfim, fino.

Pataquistão, ainda que sobre sua localização só se pudesse dizer que estava na rota de migração dos patos durante o inverno, era a típica contradição brasileira: terra dos patos, na tradução do nome, donde os patos foram exterminados e onde se os era mais difícil encontrar. O fino Miauka fizera sua carreira por ali: começara de baixo, no ramo dos espetinhos, preferência dos gatos vadios, de linguiça ou mortadela. Muito glutamato. Mesmo assim, já nesses tempos era fino: a linguiça, temperada; a mortadela, defumada. Sempre no ponto. Temperava-as e defumava-as ele mesmo, durante as madrugadas em casa, duplo turno, com muito esmero. Como era fino, pouco dormia: dormir longamente, assim como comer volumosamente, é para glutões esparramados. Miauka, já sabemos, era fino.

Importa mencionar que também era de hábitos finos: às tardes livres, quando o restaurante ia em seus recessos semanais para balanço e o movimento não compensava (Pataquistão era cidade de interior, onde as pessoas se mantêm em suas casas em vários dias da semana), preparava um bolo que sequer comia. Sempre convidava amigos ou desconhecidos para oferecer-lhes todos os pedaços. Havia naquela rotina algo de feliz e sensato, para um gato fino, mas, coisa estranha, algo também de sádico: no método, era preciso precisão. A mesma quantidade de farinha e de todos os ingredientes, medidos e remedidos meticulosamente às unidades de gramas; os tempos aos segundos, cronometrados; até o posicionamento de Miaukovksi Wola em sua cozinha era cartográfico. O bolo precisava ser o mais idêntico o possível sempre.

Parece, entretanto, que havia também algo de soberbia que, por não ser dos sentimentos mais finos, Miauka fazia questão de escondê-lo sempre. Aqueles amigos e desconhecidos, por mais que fizesse parte de um ser fino convidar a todos sem preconceitos, eram por demais glutões, e muitos já se delongavam esparramados aos feriados na frente da casa em que vivia Miauka à espera do momento do bolo. Wola divertia-se inocentemente. No entanto, algo dele o fazia sentir superiormente o mais fino dentre todos os outros.

Certo dia, pela manhã, Miaukovski Behemotakovitch Wola acorda em sobressalto com um forte barulho nos fundos do lote de sua casa. Era feriado e aquilo não podia estar bom: começara o dia fora de sua rotina, poucos minutos antes do despertador sagradamente calculado para o tempo de sono padrão de seu descanso.

Levantou-se atormentado. Quando ia pela sala, pelas frestas das cortinas e para além das vidraças, do lado de fora, pode entrever o vulto de galinha ou animal similar, que viria saber depois tratar-se de uma pata. Certamente, não era dos seus: o jeito de andar desengonçado, remelexudo para além da elegância, aquelas cores esverdeadas escuras, que contrastavam com o inverno acinzentado.

Postou-se um momento atrás da porta refletindo sobre abri-la ou não. O vulto deslocava-se de um lado para o outro, como que tentando mirar dentro de casa. Era, pelo menos, a impressão visual que tinha Miauka da porta de onde olhava, no chão, os deslocamentos daquela sombra dentro de casa. Num breve suspiro, um pouco desolado, talvez, virou-se rápido e agarrou a maçaneta. Abriu.

Cloacova levantava as asas e, cobrindo a testa com as penas, tentava, de fato, mirar dentro da casa. Não via nada. Para sua surpresa, quase deu de cara com Miauka enquanto apertava os olhos e se deslocava para tentar enxergar algo.

– Oh! Que sobressalto! Oh! Senhor! Um senhor sobressalto!

Cloacova atrapalhava-se com as palavras tão facilmente como se atrapalhava com qualquer coisa.

– Digo… um grande sobressalto… que eu tive. Não o senhor! É certo que o senhor é um senhor, mas não um senhor sobressalto! Até porque eu tive um certo sobressalto, mas não tenho ao senhor! Oh! Que digo eu? Não quero ter ao senhor! Oh! Não… não… de forma alguma. Não que o senhor não seja querível. Ou querido. O senhor tem ares de ser querido (Miauka certamente havia também causado uma certa impressão em Cloacova). Mas, que digo eu? Oh! Sou Cloacova. Muito prazer! Oh! Que prazer! Oh! De novo me desajeitando! Hihi.

Bateu com o dorso das asas na testa, em uma referência às bobagens que dizia.

– Queira a senhora me desculpar… Mas…

– Oh! Sim! Deixe-me que me apresente ao senhor! Que bobagem a minha, vir por cá ter uma entrevista com o senhor e não me apresentar-me adequadamente! Hihi. Oh! Sou Cloacova. E estou aqui por um determinado assunto. Um assunto que muito me exaspera. Oh! Senhor! Se pudesse dizer desse assunto sem muito me emocionar, seria mais fácil. Oh! Certo que seria. Ainda que um assunto incerto. Digo: é um certo assunto sobre uma certa incerteza. Oh! Que digo eu? Senhor! Que dificuldade! Que sofrimento, Senhor!

– Queira a senhora entrar. Venha, venha. Ofereço-lhe um copo d’água? Sente-se, por favor. Por aqui. Sente-se aqui. Fique à vontade, sim? Um copo d’água agora mesmo! Tome! Aqui, aqui. Isso, beba!

– Oh! Senhor! Era meu bebê! Patavina Cloacovitchka. Minha pequena! Oh! Meu senhor! Como dói!

Cloacova fazia que desfalecia sobre a poltrona. A impressão que lhe causara Miaukovski a deixara muito à vontade. Talvez à vontade até demais, poderiam alguns dizer. Mas aquilo não era problema naquele momento. Wola procurava ouvi-la atentamente, decifrando seu pensamento caótico.

– Patiúshka se perdeu de mim em pleno voo, meu Senhor. Vinha eu nessa última leva de migração com minha filhota por cima das asas quando a perdi! Simplesmente a perdi! Juro-lhe (deu ênfase nesses dizeres) que não sou desajuizada. Tinha-a comigo, é certo! É claro e certo como o sol que nos cegava! Oh! Senhor, nem perguntei-lhe o nome dessa boa alma que é o senhor e já despejei-lhe tantos infortúnios! Perdoe-me o meu sofrimento, senhor!

– Chamo-me Miaukovski Behemotakovitch Wola…

– Oh! Senhor Miauka! Muito grata que sou ao senhor, senhor Miauka! – Não pôde conter-se Cloacova ao saber o nome de seu salvador.

– Mas especificamente a você sobre certo assunto, não tenho nenhuma comunicação que possa fazer. Deseja mais água?

– Oh! Não, senhor Miauka. Estou bem de água. Só de água, é verdade. Pois não sinto bem com toda essa situação e sem minha filhinha. Mas agradeço-lhe enormemente a escuta. Eres um nobre. Por certo que eres.

Fez-se um silêncio muito breve. Talvez tenha sido o primeiro momento que Cloacova dera-se conta de que respirava. Sobressaltada, levantou-se, para a surpresa de Miauka.

– Devo ir. Certamente eres um senhor trabalhador. Sim. Que trabalha muito e muito bem. Desculpe-me pela importunice. Estava realmente muito preocupada atrás de minha menina. Bem, ainda estou. Devo continuar procurando-a. Se me dá licença, muito obrigada! Aliás, quem deve pedir-me a licença há de ser o senhor. Oh! Desculpe-me novamente minha cabeça! Obrigada!

– Não se preocupe. Hoje, para mim, é feriado. Sou chef e os estabelecimentos estão cerrados. Devo apenas preparar um bolo, como de costume, para oferecê-lo à comunidade em algum tempo. Aí, sim, que terei as mãos na massa (disse-o com uma risadinha breve, como que tomando o jeito de se expressar de Cloacova por seu, porém sem perder a elegância). Peço-lhe que venha. Há de ser uma oportunidade para interrogar aos demais quanto ao assunto de sua Patiúshka.

– Oh! Sim! Muito grata ao senhor. Eres um nobre!

***

A rua estava coalhada de gente quando Cloacova retornou. “De fato, esse Miauka causa uma certa impressão nas pessoas”, pensava ela. Toda sorte de gente se amontoava em frente à casa do senhor. Coisa estranha, Cloacova não podia nomear o que sentia, ainda que costumeiramente sempre tivesse muitas – até demais – palavras por dizer. Por um lado, seriam muitos olhares a lhe comunicar onde poderia estar sua Patiúshka. Doutro, temia-lhe que ninguém compreendesse nada. Mas, mais do que isso, incomodava-lhe a impressão que Miauka causava a toda aquela gente. Seria pela barriga que os conquistara? Em uma alma como de Cloacova não poderia haver senão dúvidas e sofrimentos humildes, sem qualquer suspeita ou maldizer de gato tão nobre. Mais estranho era surgirem-lhe tais impressões, tendo, logo ele, sido tão solícito para com ela.

Cloacova foi ter com o cozinheiro na cozinha. Aproximou-se furtivamente como que jogando a cabeça para um lado e para o outro esperançosa de ser vista. Miauka avistou-a e abriu um vasto sorriso, muito diferente da impressão que ele lhe havia causado a ela pela manhã. Ficaram-lhe evidentes os caninos proeminentes muito brilhantes, como que lustrados. Finos. A saliva refletia a luz do sol que passava pela janela.

– Senhores, queiram conhecer a senhorita Cloacova. Esperava-a com muita angústia. Ela está aqui para interrogá-los segundo uma certa entrevista, para que vocês possam comunicar-lhe sobre certo assunto relativo à sua Patiúshka.

– Oh! Sim – Respondeu prontamente Cloacova – Muito grata, sr. Miauka. Patiúshka, minha filhinha. Vínhamos pelos ares em migração muito felizes de perseguir o sol e guiadas pelo magnetismo. E já não sei agora se ela vinha por cima ou por baixo de mim, mas era próxima. Muito próxima. Até que Patiúshka esvaneceu-se nos ares. Quando tive por mim! Oh! Que sofrimento lembrar-me! Quando tive por mim já não a tinha por mim! Digo, já não a tinha comigo. Tive a mim mesma por mim. Tomei conhecimento de que não a tinha comigo! Oh! Quanto sofrimento! Não poderia ter palavras, senhores, para dizer-lhes daquele momento que tive por mim sem tê-la a ela.

Cloacova irrompeu num choro frenético, portando-se menos do que já se portava. Os senhores, uns três, de todas as espécies, olhavam-na com condolências, sem dizer nada. Seu sofrimento não era outra coisa que inominável. Wola fez com os braços para que se retirassem e conduziu Cloacova para próximo do fogão, para os fundos da cozinha. Ela, enxugando com dificuldade os olhos de lágrimas – suas penas eram muito impermeáveis, dificultando retirar-lhe a água dos olhos –, levantou a cabeça e surpreendeu-se mais uma vez. Pela janela da cozinha, nos fundos do lote, podia avistar um majestoso moinho de vento, que provia toda a energia para casa. O fogão elétrico, a geladeira, tantos equipamentos diversos dignos de um autêntico chef de cozinha, finíssimo, todos alimentados por aquele moinho de vento. De súbito, a face de Cloacova entrava em nova convulsão, mas não chorava. Olhava com espanto para Miauka, que queria dizer-lhe qualquer coisa – e dizia – mas ela nesse momento não podia compreender qualquer palavra.

De resto, o loteamento era vazio, muito limpo, rastelado com esmero. Mas a Clocava causava-lhe, naquele momento, qualquer impressão de sujo, de mortificado, totalmente incongruente com a personalidade de Miauka, tão nobre e assujeitado sujeito dentro de seu habitat e vivendo segundo sua natureza finíssima. Ele tinha uma xícara de café pelas mãos, cuja aba segurava com muita delicadeza, levantando o dedo mínimo às goladas para tomá-lo.

– O bolo – disse ela, quase engasgando em todas as palavras que evitava dizer – deu certo?

– Oh! Sim, srta. Cloacova! Acredito que muito certo. Estão muitos aqui muito excitados com o resultado. – Dizia sorrindo, expondo as presas – Eu mesmo não tive a oportunidade de experimentá-lo por minha própria experiência.

– Muito bom, sr. Miauka! O senhor é mesmo um nobre! – Disse-o já sem a mesma entonação de mais cedo.

– Gostaria de experimentá-lo, srta. Cloacova?

– Oh! Sim! Claro, sr. Miauka! Muito grata! Preciso me recompor. Estive sem comer todo o dia em busca de minha Patiúshka.

Cloacova não queria. Mas a força de sua personalidade a persuadi-la era tamanha que não saberia recusar qualquer coisa, qualquer pedido ou qualquer oferecimento de qualquer pessoa. Aceitou.

Quando Miaukóvski cortava o bolo, a pata percebeu-o ao bolo muito molhado, oleoso, e aquilo lhe causou certa impressão também. Quanto de gordura teria usado Miauka para produzir aquele bolo? Ele o saberia dizer à exatidão, pelos seus rituais, mas essa pergunta nunca fora proferida pela pata, entalada em suas próprias palavras.

– Oh! Senhor Miauka, muito grata! Muito grata mesmo!

Tomava o bolo pelas mãos ao mesmo tempo que chorava freneticamente e tentava secar a face com as penas e irritava-se em não consegui-lo fazer. As lágrimas caíam-lhe por cima do bolo.

– Venha, srta. Cloacova, sente-se aqui. Não vá lá deixar o bolo cair-lhes das mãos. Não há pressa. Por aqui. Isso. Sente-se aqui. Queres mais um copo d’água? Ah! A senhora deveria de aceitar. Vá. Tome. Aqui está. Isso. Beba.

Cloacova recompunha-se como pela manhã, mas sua tensão não baixava em momento algum, diferentemente do que se passara antes. Experimentou o bolo em uma sutil bicada. A massa parou-lhe no papo, sem descer. Estava, enfim, saboroso. Mas algo em sua textura não lhe agradara. Não poderia dizer o quê, não era especialista em bolos, os quais sempre comera como evento social em casa de parentes, posto que também não era sequer cozinheira. Mas aquele era o carro-chefe das produções autênticas de Miauka. Saboroso estava, não podia negá-lo. Isso causava-lhe mais asco ainda. Engoliu forçosamente, como se o bolo alimentar lhe descesse pelas vias erradas. Sentiu uma certa dificuldade em respirar imediatamente após aquele movimento, mas manteve a compostura novamente. Todo o ambiente e o próprio Miauka a fitar-lhe profundamente os olhos com aquele sorriso animal estampado eram muito finos para que ela se permitisse qualquer vexame. Era, apesar de tudo, muito humilde e recatada.

– Oh! Com licença, sr. Miauka. Está uma delícia. Por certo está! O senhor é muito batalhador. Isso é certo que é e não há dúvidas. Não poderia dizer quem o poderia duvidar disso. Mas, por favor, diga-me onde é o banheiro. Não consigo conter-me. É de minha natureza a urgência aos chamados da natureza! Oh! Que vida! Por favor!

Miaukovski, muito solicito, deslocou-se para trás, dando-lhe passagem e apontando à direita e ao fundo do corredor com o braço. Cloacova correu desengonçada.

Ao entrar no banheiro, um pôster enorme pendia na parede à frente. Uma foto enorme de Miauka, com a face sedutora e segurando um prato chiquérrimo da melhor culinária francesa se exibia. Em letras garrafais, Cloacova podia ler: “Gato, belo e fino: chef ganhador do melhor foie gras de Pataquistão 2019 é vegano”.

O choro interrompeu-se de imediato dos olhos da pata. Ela não o podia acreditar. Virou-se dentro do cubículo do banheiro procurando a privada, mas era tarde demais. O chão, agora enlameado, estava perdido também. Desesperou-se e saiu correndo, afugentada.

Na fuga, esbarrou com Miauka, que quase projetou-se ao chão juntamente com ela. Recompondo-se, ela gritou-lhe encolerizada:

– Como fizeste esse bolo!?

Toda a gente interrompeu-se em seus diálogos e mirou à dupla. Miauka, enchendo-se o peito com tranquilidade perante a atenção ganhada naquele momento, afirmou sossegadamente:

– Com minhas próprias Patas (dando ênfase à última palavra, enquanto balançava o que ele mesmo chamava de mãos – e não patas – no ar).

Cloacova não pôde dizer mais nada. Saiu aos prantos e alçou um largo e profundo voo já da porta para fora da casa.

Na subida, viu o majestoso moinho de vento rodando. Uma andorinha colidia-se contra uma de suas pás e caía desmaiada no quintal de Miauka.

Tudo aquilo, para ela, era simplesmente terrível demais.

 


 

5                    Racionikov

A poeira se acumulava, imperiosa, pragmática. Racionikov era tales quales: passaria o pano uma, duas, três vezes. Os pelinhos de poeira, gravetos agarrados no paninho úmido deixariam riscos de sujeira por cima do móvel. Um processo infinito, circular. Enfadonho mesmo. Noutro dia, a poeira estaria lá de novo, imperiosa, pragmática. Sendo-lhe até muito útil: disfarçando os lastros de sujeira densa que o paninho, sempre sujo, deixaria sobre os móveis. Era preciso passar o pano uma dúzia de vezes, enxaguá-lo uma dúzia de vezes, passá-lo novamente outra dúzia. Que fosse preciso! Continuaria sendo!

Atrás e por cima da poeira Racionikov brincava com seu pequeno ábaco infantil, fazendo contas, equilibrando-as. O resultado importava? Mais a simetria, o equilíbrio de contas de um e outro lado. E o pivô central, que não permitia qualquer parcialidade e necessariamente pendia para um ou para outro lado. Seu ábacozinho, entretanto, tinha uma perninha defeituosa. Joga-se-lho mais contas para a direita, pendia como um louco, ameaçava tombar-lhe da mesa, cair, estatelar-se. Um tratante! De que valiam as contas? A matemática? Senão a um senso estético tão particular do operador do ábaco, racional, Racionikov.

Foram cinco dias, cinco contas, que realizou por último, antes de optar por nunca mais passar paninhos nos móveis ou brincar com ábacozinho manco. No primeiro, não saiu de casa para trabalhar. Ficou jogado sobre a cama imóvel. O móvel parecia-lhe estar por cima dele, e não o contrário. Se pensava? No tanto que pesava-lhe pensar, talvez. O chefe ligou três vezes. A mãe duas. Não eram números bons. Contabilizou: cinco ligações. A primeira é de sempre um desinteresse, não vale pegar. A segunda um ok. A terceira um desespero. Mais que isso, pouco importa. Os números não erram. Que ligassem! Não compareceu.

Levantou-se com a bexiga cheia e o corpo já desidratado apenas no começo da noite. Passou no banheiro, voltou ao quarto, sentou-se pesado com as costas encurvadas na frente do ábaco. Tomou uma porçãozinha de 20% de contas vermelhas – todas estavam centrais – e jogou para a esquerda. Manteve-se estável. Fora simbólico, revelador. As insatisfações da vida estavam postas de lado, ao relento, resolvidas de alguma forma. Relaxou, enfim. Tornou para a cama e adormeceu.

No segundo dia, não tinha de trabalhar. Constam dos documentos oficiais que tratar-se-ia de um feriado, férias ou final de semana. Não era um dia útil. Acordou mais cedo, dobrou um travesseiro na cabeceira da cama, colocou-se reclinado reto e alinhado como quem sofre de náuseas ou da boca do estômago. O braço cruzou por trás da cabeça, relaxado. Poderia assistir a algo. Não tinha o controle, entretanto. Pouco importava: assistiu a seus pensamentos flutuarem na frente de seu rosto como bolinhas de catarata que flutuam nos olhos dos doentes oftálmicos. Pensava, afinal. Se para quê? Não havia. Adormeceu e acordou na mesma posição algumas vezes. Outras vezes, sem acordar, sabia-se adormecido e acordava dentro do mesmo sonho, lúcido, repetido, constante. Era cansativo, mas divertido. O sol subiu à esquerda, centralizou-se, baixou do outro lado, desequilibrou com seu peso a perninha do ábaco. Lembrou-se dele. Jogou 20% das pedrinhas – azuis – para a direita, equilibrando as contas.

No terceiro dia, meteu-se na rua logo bem cedo. O comércio fervilhante. Pessoas por todos os lados. Empurrões, esbarrões, abalroamentos, apertos de mão: todo tipo de contato e encontro. Entrou na lojinha de pesca. “Tem corda?”. “Que tipo?”. “Para atar barquinho de pesca”. “Tem demais!”. “Ótimo!”. Aquele dia ia bem. Podia ver-se confrontando seus medos. Dava-lhe alguma força. Tinha vários medos. Do mar também. Respeitava-o. Mas ia pescar? Tinha em mente… A corda chegou pelas mãos do vendedor, de sisal, sisuda, áspera. Tinha um toque gostoso. A mão percorria fechada seu corpo desmilinguido, semirrígido. Os calos da mão eram, enfim, sensíveis. Aplicava-lhe algumas tensões, verificando-lhe a resistência. Sim. Estava boa. Era ela. Sentiu-se animado. Aceitou, comprou, pagou, meteu-se na rua de novo e foi-se para casa.

Entrando, observou os móveis. Mais uma camada de poeira se acumulava. Recusava-se a limpá-la à casa toda. Foi correndo para o quarto e sentou ereto e satisfeito perante o ábaco. Colocou a corda do lado. Depois levantou-a novamente e passou o paninho com raiva na mesa para que não sujasse a corda. Limpou-a onde já havia empoeirado-se um pouco. Limpou também por debaixo do ábaco. Parou e pensou, olhando para a corda. Para a direita ou para a esquerda? Jogou 20% – verdes – para a esquerda. O ábacozinho nem se mexeu.

No quarto dia arranjou um atestado médico. A cabeça doía-lhe de uma maneira impressionante. O dia resumiu-se a dipironas, descanso, água e pensamentos neurastênicos que se formavam como imagens mentais plenamente visíveis: dos vasos cerebrais enervando-se e rompendo-se e esbanjando sangue por meio da massa cinzenta cerebral e a dor lancinante daquilo que os médicos chamariam acidente vascular cerebral. Acidente? Levantou-se com dificuldade brutal e foi até o ábaco e meteu-lhe a mão lançando 20% de contas amarelas para a direita. Queria melhorar.

No quinto dia acordou sem se saber direito. Empolgado sem ânimo, como alguém que espera sabendo que não vai chegar. Sentiu-se abstrato. Qual o propósito? Qual a proposição? Qual a sugestão? Propósito talvez seja isso: uma entidade sempre futura. Enquanto sugestão, está sempre por acontecer. Parte de um discurso a ser desenvolvido. A acontecer. Quando se ia levantando, a campainha soou. Meteu-se na cama e fechou a cara com o lençol. Era, afinal, uma criança, fugidio daquilo que mais lhe atormentava: a vida lá de fora. Mas era ela que havia para ser vivida. Uma vida sem pó, sem contas, sem equilíbrio. Uma vida inestética. A estética da brutalidade. A normalização. Racionikov não gostava. Eram todos racionais! Suplantavam sentimentos com uma facilidade sem igual. Os mesmos sentimentos, talvez, que se acumulavam no pó da casa de Racionikov. Passar o pano como todos passavam, ir trabalhar, fazer contas matemáticas, divertir-se, pescar. Nada disso. Preferia a estética simétrica, o pó acumulado, a corda.

Levantou-se lento. Parecia esforçar-se para sentir a dor de cabeça que outrora sentira. Agora a queria, para legitimar sua lassidão. Sentou frente ao ábaco. Faltavam-lhe centrais 20% de continhas roxas. Um pensamento veio-lhe à mente: como tudo é tão especulativo! Essa vida… A outra…

Meteu os dois indicadores no centro do ábaco, por dentro do meio das continhas roxas. Sentiu o toque duro da madeirinha leve de que era feito. Deslizou, tentando fazer coincidir os tempos, para a direita e para a esquerda, 10% para cada. O ábaco trepidou, mas segurou-se. Tinha 50% das contas de cada lado, com cores diferentes. Só o roxo-violeta da especulação equilibrava-se.

O vermelho das insatisfações avolumava-se à esquerda.

O azul da diversão tediosa avolumava-se à direita.

O verde da curiosidade sensória metia-se para a esquerda.

O violento amarelo do medo da dor ia à direita.

Olhou de novo o azul, triste, pálido. Divertira-se mesmo em sonhos lúcidos? Quão lúcidos? Seria aquele, o propósito? Mas um propósito passado? Feito de histórias vividas, sonhadas? O azul parecia-lhe sem propósito ao lado do amarelo. Juntos eram tão verdes que Racionikov coçava-se para meter-lhe o dedo para a esquerda. Mas era tão necessário o equilíbrio, o binarismo. O propósito é postulado em sua forma binária: tem ou não tem propósito pelo simples fato de que afirmar o despropósito é difícil, e faz as pessoas viverem. Se o sentido fosse um continuum, veríamos que todo sentido que parece haver é necessariamente pequeno. Desvalorizando-se o propósito, seríamos obrigados a viver amarelamente amedrontados.

A diversão azul pareceu-lhe pequenina. Começou a arrastar, devagarinho, conta azul a conta azul, da direita para a esquerda, desequilibrando o ábaco. Mas como a sua perninha frágil era a direita, manteve-se ali quieto, equilibrado. Parecia, antes de tudo, decidido. Privilegiava aquelas contas que, finalmente, acumularam-se definitivamente à esquerda: insatisfação, curiosidade, meia especulação e alguns azuis de propósito despropositado.

Racionikov tomou um banquinho e posicionou-o no centro da sala. Passou o pano mecanicamente doze vezes, lavando-o entre uma passada e outra. Não poderia haver uma finura de poeira para ele. Tomou o ábacozinho com as duas mãos, com muito amor. Apoiou-lhe no banquinho. O ábaco era-lhe quase um pai para ele, dono do conhecimento certo, imperioso, dava-lhe ordens. Jogou a corda limpa por uma haste que atravessava rígida a sala. Fez um nó circular violento em silêncio. Passou a mão e sentiu novamente toda aquela curiosidade sensória do toque áspero gostoso. Subiu no banquinho sem tocar no ábacozinho que ficava quietinho gritando a seu lado, com mais contas para a esquerda que para a direita, calculado. Passou a corda no pescoço. Sentiu a aspereza na jugular. Ela pulsava. Lembrou-se do acidente vascular cerebral.

Acidente? O ábacozinho foi ao chão junto com o banquinho. As contas espalharam-se no cômodo.

 

 


 

Este livro foi impresso no inverno de 2022, na tipografia LeMonde Livre, corpo 11, sobre papel Pólen Bold 90g/m².

 

1ª edição: 2022

 

Produção editorial, projeto gráfico, preparação e editoração eletrônica

Marília Carreiro | @mariliacafe

 

 

 

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9610/98. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

 

Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

 

www.editorapedregulho.com.br

facebook.com/editorapedregulho

instagram.com/editorapedregulho

twitter.com/_pedregulho_

 

 

Sobre o Autor:

RAFAEL SARTO MULLER é o tipo de sujeito capaz de, ao retirar sua cervejinha estupidamente gelada do congelador -e frustrar-se quando ela congela neste exato momento-, tecer um tratado de pedagogia sobre o ensino de física nas escolas e como o super-resfriamento da água tem sido tratado como um tema menor, exceptivo, contra-hegemônico nos currículos. Idealista utópico, optou por viver como um sofista: se disserem que o mundo está muito cheio de Verdades, é isso; se disserem que o mundo está muito cheio de Mentiras, é isso. Flerta sensualmente com a literatura, linguística, filosofia, sociologia, teologia, psicologia, antropologia, economia e outros saberes. "Galina Popóvka e outras estórias" parece ter sido cria de um desses bacanais. Como a mitologia ainda é um desafio para o autor, há sérios (ou nem tanto) motivos para duvidar disso, posto que seria ilógico promover bacanais sem se saber quem fora Baco. Graças a Deus, senhor nosso Jesus Cristo, a Antiguidade encontra-se logo ali e vem-se toda tarde ao presente tomar cafezinho, podendo-se questioná-la sobre a ocorrência ou não desses eventos. É, enfim, doutorando em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas, capixaba de criação e coração, humano de gatos, e gosta de flexionar alguns verbos incorretamente para não esquecer que a ética e a estética -ideológicas por natureza- vêm antes do conhecimento certo (que, por sinal, ainda não chegou; deve de estar atrasado). Enquanto aguardamos, teje em casa e boa leitura!